A morte e o morrer na Unidade de Terapia Intensiva UTI

Atualizado em 13/03/2022 às 11:16

Embora a morte esteja presente no cotidiano dos profissionais da saúde este sentimento de fracasso ainda se torna um processo muito difícil de aceitar e lidar perante esta situação (POLES; BOUSSO, 2006).

Esse sentimento de derrota e onipotência pode ser considerado pelo fato que dentre os profissionais da saúde, o enfermeiro passa maior parte do tempo com o doente e sua família. Conhecendo desta maneira toda sua evolução clinica, e o que de certa forma são transmitidos a estes profissionais confiança de ajudar a salvar suas vidas, o que talvez possam lhe proporcionar a estes, um sentimento de fracasso por saberem que não há mais nada o que fazer para a melhora do prognóstico (SOUZA; BOEMER, 2005).

Afirma-se que outro sentimento que acercam os profissionais é a culpa, pois em muitos casos afirmam que chegam a desejar que o paciente descanse e saia daquele quadro de sofrimento, porém por outro lado quando o paciente morre vivenciam sentimentos de culpa intensa por terem desejado este desfecho (RIBEIRO et al, 1998).

Mesmo com os avanços tecnológicos na saúde e em especial na área de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), não se pode evitar este sentimento de incapacidade perante o outro (SANCHES; CARVALHO, 2009)

O ambiente de UTI é destinado ao tratamento para os doentes graves e recuperáveis e que demandam de profissionais especializados com equipamentos de ultima geração. Porém ressalta-se que, mesmo com todo o esforço e especialização da equipe de profissionais, muitos pacientes se encontram em fase terminal, onde a morte se faz presente a cada instante (SANCHES; CARVALHO, 2009).

Devido à utilização desses aparelhos sofisticados, os cuidados de humanização com o paciente, podem acabar sendo esquecidos, ou até mesmo ignorados propositalmente, tendo como pretexto de não se envolverem com o presente sofrimento apresentado. Onde em muitas circunstâncias, se esquecem que atrás das máquinas, e equipamentos como drenos e tubos encontra-se uma vida em fase terminal e principalmente que ainda há existência de sentimentos a serem valorizados e respeitados (MORITZ; NASSA, 2004).

Neste mesmo sentido, é afirmado ainda que a UTI por ser uma unidade complexa, onde os profissionais atuantes neste espaço são vistos como insensíveis, uma vez que direcionam o cuidar priorizando o biológico ou em dimensão mecanista pela destreza necessária e pelo lidar diário com diversos equipamentos, sendo considerados como profissionais frios em suas decisões (SALOMÉ et al., 2008).

A morte e o morrer para os profissional de enfermagem na Unidade de Terapia Intensiva UTI

Por mais que se evite pensar na morte, ela vive no cotidiano de todos os que atuam nas UTI e, em muitos casos, é inevitável fazê-lo, apesar dos recursos disponíveis com o único propósito de superá-la e vencê-la. A UTI é um ambiente especializado, que conta com recursos materiais e humanos para lidar com a morte; mas, ao mesmo tempo, um dos recintos mais agressivos e tensos do hospital, por abrigar pacientes graves ou terminais .
Mesmo sendo o espaço hospitalar destinado à recuperação, a UTI é também o que abriga pessoas em situação tão grave, que a unidade configura-se o último recurso para tentar impedir a morte. O fim, então, apresenta-se como possibilidade real e, mesmo sob o peso cultural de evadir-se do assunto, não há como fugir de pensar e até mesmo sentir sua presença. Esses sentimentos e impressões não permeiam apenas o paciente, mas afetam igualmente seus familiares e a equipe envolvida em seus cuidados.
A abordagem dessa realidade remete à principal questão originária do problema: afinal, qual é a relação desses profissionais com o processo de morrer e a morte? Seus questionamentos, medos, inseguranças e sentimentos são diversos e profundos. O cerne do difícil processo de lidar com a morte remete também à formação e preparação dos profissionais, ainda pouco eficientes na tarefa de fomentar uma atuação que alie cientificidade, técnica e humanização.

A UTI traz um paradoxo importante quanto a seu papel para os profissionais que nela trabalham: uns a concebem como local para se morrer; outros, que não aceitam a morte, iludem-se com os recursos propiciados pela tecnologia e a ciência e acabam perdendo o senso crítico, ao acreditar que podem reverter a situação de muitos doentes terminais, atitude que resulta em sofrimento do paciente, de familiares e de toda a equipe de saúde.

Essa dicotomia de funções na UTI – unidade que atende tanto a pacientes recuperáveis quanto àqueles em estágio terminal, como já vimos – alimenta nos profissionais o desejo de vencer a morte, mas, em contrapartida, também os leva a se envolver cotidianamente com ela. E, dessa forma, os profissionais de fato são afetados por esse processo, uma vez que, ao expressarem a necessidade racional de não permitir que as experiências laborais interfiram em sua vida pessoal, por se tratar de relações humanas impregnadas de todas as vicissitudes próprias desse tipo de contato, não lhes é possível realizar tamanha clivagem emocional.

Dados de pesquisas realizadas

Pesquisa 01

Em uma pesquisa realizada com equipe multidisciplinar da UTI de um hospital público da região oeste do estado de Santa Catarina, foi possível identificar e classificar em quatro grupos as informações coletadas.
O primeiro grupo concebe a morte como natural/normal, entende-a como processo igual ao nascimento.
O segundo encara a morte de forma dicotômica, caracterizando-a como ordem e como desordem, que produz tristeza, dor, mal-estar e sofrimento.
O terceiro grupo tem concepções ligadas a religiosidade, acreditando na morte apenas como passagem para algo além do que podemos visualizar em vida.
O quarto grupo mascara a morte e tem, diante dela, atitudes de frieza, onipotência, negação, derrota profissional .

Pesquisa 02

Em outra pesquisa realizada com dez enfermeiras de UTI de hospital público de ensino, revelou que, além de não haver uniformidade no cuidado, há também certa indiferença quanto aos aspectos emocional, espiritual e social e supervalorização das ações técnicas. Embora tenha evidenciado a preocupação dos enfermeiros com o sofrimento da família, o estudo indicou que há dificuldade generalizada em compreender a morte como parte do ciclo vital, mostrando também que, tanto no âmbito cadêmico quanto na prática hospitalar, existe defasagem na preparação desses profissionais para a integralidade no cuidado .

Pesquisa 03

Resultados apresentados por estudo com 18 médicos de UTI adulto de um hospital geral indicam que esses intensivistas têm as mesmas dificuldades que os demais profissionais de saúde, seja na aceitação da morte, seja na forma de lidar com pacientes e familiares. Além disso, tendem ao estresse, à ansiedade e às mais variadas confusões emocionais .

Análise das pesquisas

Da análise desses estudos, pode-se depreender que as mesmas dúvidas, medos ou crenças da população em geral estão presentes na vida dos profissionais de saúde e que esses estados não podem ser anulados por completo quando se está no exercício da profissão; ao contrário, quando se pensa em um trabalho humanizado, esses sentimentos devem ser vivenciados e considerados, sobretudo em situações extremas, como é o caso dos pacientes terminais ou em estado grave. Reconhecer que os profissionais são antes de tudo seres humanos, envolvidos num complexo de emoções e responsabilidades, é o primeiro passo na promoção de seu adequado preparo para lidar não apenas com os próprios sentimentos, mas também com outros profissionais, familiares e, especialmente, a pessoa doente.

Ocorre que, com o desenvolvimento tecnológico e científico, o mito da imortalidade se estabeleceu na sociedade em geral e entre os profissionais de saúde em particular, que tendem a ver a morte no exercício de suas funções como um fracasso, como se não tivessem alcançado a eficiência necessária. Dessa forma, a preparação para trabalhar com o processo de morrer e a morte tornou-se algo a ser (quase) ignorado nas atividades profissionais de saúde.

Pesquisa com enfermeiros e técnicos de enfermagem de UTI neonatal de dois hospitais públicos da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, confirma essa constatação ao levanter os sentimentos desses profissionais em relação à morte de pacientes, mostrando que entre eles prevalecem culpa, fracasso e negação .

No entanto, a prática em saúde, além dos aspectos médicos, como tratamentos, diagnóstico e aplicação de medicamentos, envolve também os aspectos “medicinais”, que abrangem todos os atos capazes de promover o bem-estar ou consolar os infortunados, como remédios, cuidados, afeto e respeito à pessoa e a suas crenças e cultura. A diferença entre os aspectos médico e medicinal está no fato de que o primeiro depende estritamente da atuação do profissional de saúde, enquanto o último está presente tanto em quem cuida como em quem recebe o cuidado. Portanto, estando o profissional na função de cuidar, há que incluir entre essas atribuições não somente a busca da cura, mas também o saber lidar com a morte daquele paciente em estado crítico, e com seus familiares, sem esquecer a responsabilidade do cuidado consigo próprio, como ser humano que se depara cotidianamente com a morte . Embora nem sempre se consiga a desejável harmonia entre a técnica médica e o aspecto medicinal, é preciso promover o equilíbrio entre ambos.

Incluem-se nas funções da equipe multiprofissional da UTI os cuidados paliativos, que não se limitam a ações mecanicistas. Estudo realizado com profissionais da UTI de hospital brasileiro de ensino revela que a ênfase é dada aos aspectos higiênicos, estéticos e ao conforto físico, como minimização da dor, em detrimento da assistência psicológica, espiritual e social, bem como do estabelecimento de relação afável entre profissional, família e paciente.

As ações paliativas são pouco exploradas e até mesmo consideradas inapropriadas no espaço das UTI, ainda pautadas pela filosofia mecanicista , o que provavelmente reflete os pressupostos adotados pelas disciplinas de graduação nas áreas ligadas à saúde – entre elas a prática intensivista –, as quais não contemplam abordagens teóricas mais profundas. A pessoa em estado terminal tem os mesmos direitos que os demais pacientes: apoio pessoal, direito de ser informado e de recusar procedimentos ou tratamentos, e especialmente direito a cuidado respeitoso e ético. Além disso, em caso de recusa do tratamento clássico, os cuidados paliativos devem ser o mais possível eficientes e a atuação dos profissionais de saúde deve limitar-se aos protocolos de cuidados integrais .

Como ensina Kübler-Ross , um dos aspectos que podem favorecer substancialmente a preparação dos profissionais é pensar na própria finitude, adquirir consciência da inevitabilidade da morte e do morrer. Exercitar essa consciência ajuda a desenvolver a capacidade de percepção real de nós mesmos, de quem somos e do que necessitamos, de sorte que teremos melhores possibilidades de olhar para o outro como um ser único, ímpar, com especificidades a serem respeitadas. Esse é um dos caminhos para compreender a morte como parte imponderável da vida e fomentar a coragem necessária para aceitá-la quando inevitável, provocando a quebra de tabus sociais e contribuindo para mudra a mentalidade “antimorte” fixada em nossa cultura e que acaba por refletir-se na conduta dos profissionais de saúde.

Como profissionais de saúde, essa consciência permitirá tratar o outro na sua integralidade. Segundo Alves e Selli , a integralidade na assistência, considerada a forma eficiente e humanizada de ação em saúde, requer da equipe multidisciplinar a capacidade de ajudar indivíduos com doenças terminais e seus familiares, amparando-os nesse momento crucial e respeitando sua espiritualidade e crenças, tanto quanto deve respeitar suas especificidades
biológicas e decisões racionais.

A ética, fomentada no campo da saúde pela bioética, colabora diretamente para a formação e a prática dos profissionais de saúde, pois constitui o fundamento da tomada de decisões, das atitudes e do entendimento de sua função como cuidador profissional de doentes em situação terminal. 

Nesse contexto teórico e conceitual, a bioética propõe a reflexão ética acerca das ações concretas que envolvem o comportamento cotidiano e fomenta a tolerância e a aceitação das pluralidades.

Demonstra, além disso, que cuidar integralmente do paciente em processo de morrer é tão importante e gratificante quanto a cura das pessoas que contam com essa possibilidade. Proporcionar uma boa morte é prestar cuidados com dignidade e respeito, proporcionando uma terminalidade com o mínimo de sofrimento e sem dor .

O ato de cuidar, portanto, não significa salvar vidas a qualquer preço, mas, sim, preservar a vida com dignidade, respeitar o tempo, as necessidades e decisões individuais, além de assistir a pessoa doente, sem que isso signifique mantê-la viva ou curá-la .
Incorporar essa visão medicinal à prática dos cuidados de saúde é de suma importância para resgatar o caráter humano na relação entre o paciente, seus familiares e os profissionais que os assistem. Assim, teríamos profissionais capacitados para agir de acordo com a ciência e a técnica, mas sem negar, ignorar ou suprimir crenças pessoais ou sentimentos e emoções advindos das singularidades de cada pessoa. 

Além do mais, o respeito do profissional precisa estender-se a si próprio, como ser em igualdade com os demais, incluindo os doentes em estado terminal, em pelo menos um aspecto: afinitude.

Referências

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