Anemia na Gestação: Aspectos Clínicos, Fisiológicos e Diagnósticos

Última atualização: 07/05/2025

A anemia durante a gestação é uma das intercorrências clínicas mais prevalentes no acompanhamento pré-natal, configurando-se como um problema de saúde pública de grande relevância, sobretudo em países em desenvolvimento. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), considera-se anemia na gravidez quando os níveis de hemoglobina estão iguais ou inferiores a 11,0 g/dL. Essa condição pode ter implicações importantes na saúde materna e fetal, sendo fundamental o seu reconhecimento precoce, classificação adequada e tratamento eficaz.

Alterações Fisiológicas e a Anemia da Gravidez

Durante a gestação, o corpo da mulher passa por diversas modificações fisiológicas para atender às necessidades do feto em crescimento e preparar o organismo materno para o parto e a lactação. Uma dessas alterações é o aumento do volume plasmático, que se inicia por volta da 8ª semana e atinge seu pico entre a 32ª e a 34ª semana. Esse fenômeno é conhecido como hipervolemia gestacional e resulta em uma diluição dos componentes sanguíneos, ocasionando a chamada anemia fisiológica da gravidez.

Nesse contexto, embora haja uma queda dos valores de hemoglobina, hematócrito e da concentração de glóbulos vermelhos, essa redução é esperada e não costuma comprometer a oxigenação tecidual, já que a perfusão está preservada pelo aumento do volume sanguíneo. Essa forma de anemia não apresenta, em geral, repercussões clínicas significativas, desde que os valores de hemoglobina não caiam abaixo dos limites considerados seguros.

Critérios Diagnósticos e Tipos de Anemia na Gravidez

Diante dessas alterações fisiológicas, o diagnóstico de anemia na gestação deve considerar parâmetros adicionais, além dos níveis de hemoglobina isoladamente. Um dos índices hematológicos mais utilizados nesse sentido é o Volume Corpuscular Médio (VCM), que indica o tamanho médio das hemácias. Esse índice não sofre influência direta da expansão plasmática, o que o torna útil para classificação das anemias durante a gravidez.

A partir do VCM, podemos classificar as anemias em três grandes grupos:

  • Anemias microcíticas (VCM < 85 fL): caracterizadas por hemácias menores que o normal, são geralmente causadas por deficiência de ferro (anemia ferropriva) ou distúrbios hereditários como a talassemia;
  • Anemias normocíticas (VCM entre 85 e 95 fL): com hemácias de tamanho normal, podem estar associadas a perdas sanguíneas agudas, doenças crônicas ou início de deficiência nutricional;
  • Anemias macrocíticas (VCM > 95 fL): caracterizadas por hemácias aumentadas, geralmente resultam de deficiência de ácido fólico ou vitamina B12 (anemia megaloblástica), além de outras condições como o hipotireoidismo e o uso de determinadas medicações.

Anemia Ferropriva: a Forma Mais Comum

A anemia ferropriva é a forma mais frequente de anemia durante a gravidez e decorre da deficiência de ferro, mineral essencial para a síntese de hemoglobina. Durante a gestação, a demanda por ferro aumenta consideravelmente, uma vez que é necessário suprir tanto as necessidades da mãe quanto as do feto e da placenta, além de preparar reservas para o pós-parto. Quando a ingestão dietética de ferro é insuficiente ou a absorção está comprometida, instala-se um quadro de carência, levando à anemia.

Essa condição pode ser agravada por fatores como má alimentação, intervalos gestacionais curtos, menstruações abundantes antes da gravidez, gestação múltipla e presença de parasitoses intestinais, que aumentam a perda de ferro. A anemia ferropriva, quando não tratada, pode trazer consequências importantes, como parto prematuro, baixo peso ao nascer e aumento do risco de mortalidade perinatal.

Outros Tipos de Anemias na Gestação

Além da anemia fisiológica e da ferropriva, outras formas de anemia podem acometer gestantes. Entre as mais comuns estão:

  • Anemia megaloblástica: causada pela deficiência de vitamina B12 ou ácido fólico, é mais rara, mas importante, pois pode estar associada a malformações fetais, principalmente defeitos do tubo neural;
  • Anemia falciforme: doença genética caracterizada pela presença de hemoglobina anormal (HbS), que deforma as hemácias e compromete sua função. Durante a gravidez, mulheres com doença falciforme estão em maior risco de complicações como crises dolorosas, pré-eclâmpsia e restrição do crescimento fetal;
  • Talassemias: são distúrbios genéticos da hemoglobina que resultam em produção ineficiente ou defeituosa dessa proteína. Nas formas leves (talassemia menor), a gestação pode transcorrer sem grandes intercorrências, mas nas formas graves (talassemia maior), a gravidez pode ser desaconselhada;
  • Anemia microangiopática: menos frequente, está associada a quadros como a pré-eclâmpsia, síndrome HELLP e outras condições em que ocorre destruição das hemácias por lesão vascular.

Conduta e Abordagem Clínica da Anemia Gestacional

O manejo da anemia na gravidez envolve a identificação do tipo de anemia, a investigação de suas causas e a instituição de um tratamento eficaz. Para isso, é fundamental a realização de exames laboratoriais, como hemograma completo, dosagem de ferritina, ferro sérico, capacidade total de ligação do ferro (TIBC), ácido fólico e vitamina B12, conforme o caso.

No caso da anemia ferropriva, o tratamento consiste na suplementação oral de ferro, que pode ser feita com sais ferrosos (como o sulfato ferroso), geralmente administrados em doses diárias. A melhora dos níveis de hemoglobina costuma ser observada após duas a três semanas de uso contínuo. A suplementação deve ser mantida até a normalização dos estoques de ferro, o que pode levar até três meses ou mais após a correção da anemia.

A suplementação preventiva de ferro é recomendada para todas as gestantes a partir do segundo trimestre, mesmo na ausência de diagnóstico laboratorial de anemia, como estratégia de saúde pública para reduzir a prevalência da condição. A orientação nutricional, com ênfase em alimentos ricos em ferro (como carnes vermelhas, vegetais escuros, leguminosas e cereais fortificados) e o incentivo ao consumo de vitamina C (que melhora a absorção de ferro) também são medidas importantes.

Nos casos de anemias carenciais por deficiência de vitamina B12 ou ácido fólico, a suplementação específica deve ser iniciada imediatamente. Já nas anemias hereditárias, o acompanhamento deve ser feito por equipe especializada e, muitas vezes, em serviços de referência em gestação de alto risco.

Condição frequente, porém muitas vezes subestimada

A anemia na gestação é uma condição frequente, porém muitas vezes subestimada. Sua identificação e tratamento são essenciais para o bom desfecho gestacional, tanto para a mãe quanto para o feto. O profissional de saúde deve estar atento aos sinais clínicos, conhecer os critérios diagnósticos mais adequados e aplicar condutas eficazes baseadas em evidências. O cuidado pré-natal de qualidade, com rastreamento e abordagem adequada da anemia, contribui diretamente para a redução das complicações perinatais e melhora da saúde materno-infantil.

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